segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Edgar Allan Poe



Edgar Allan Poe
Estados Unidos: 1809 // 1849
Poeta

A Génese de um Poema

A maior parte dos escritores, sobretudo os poetas, preferem deixar supor que compõem numa espécie de esplêndido frenesim, de extática intuição; literalmente, gelar-se-iam de terror à ideia de permitir ao público que desse uma espreitadela por detrás da cena para ver os laboriosos e incertos partos do pensamento, os verdadeiros planos compreendidos só no último minuto, os inúmeros balbucios de ideias que não alcançaram a maturidade da plena luz, as imaginações plenamente amadurecidas e, no entanto, rejeitadas pelo desespero de as levar a cabo, as opções e as rejeições longamente ponderadas, as tão difíceis emendas e acrescentas, numa palavra, as rodas e as empenas, as máquinas para mudança de cenário, as escadas e os alçapões, o vermelhão e os postiços que em 99% dos casos constituem os acessórios do histrião literário.
(...) No que a mim diz respeito, não compartilho da repugnância de que falei e nunca senti a mínima dificuldade em rememorar a marcha progressiva de todas as minhas obras. Escolho O Corvo por ser a mais conhecida. Proponho-me demonstrar claramente que nenhum pormenor da sua composição se pode explicar pelo acaso ou pela intuição, que a obra se desenvolveu, a par e passo, até à sua conclusão com a precisão e o rigor lógico de um problema matemático.
(...) Sendo assim determinados a extensão, o domínio e o tom, socorri-me da indução ordinária, a fim de encontrar alguma invenção artística inédita que me pudesse servir de chave para construir o poema, de eixo sobre o qual giraria toda a máquina. Ao examinar cuidadosamente todos os efeitos artísticos ordinários, ou, mais exactamente, toda a carpintaria no sentido teatral da palavra, não deixei de verificar imediatamente que nenhum tinha tido emprego tão universal como o refrão. A universalidade da sua utilização bastava para garantir-me o seu valor intrínseco e poupava-me à necessidade de submetê-lo à análise. Todavia, examinei-o pensando que poderia ser melhorado e depressa me apercebi de que ele não ultrapassara a sua fase primitiva. Tal como comummente é empregado, o refrão não somente se limita ao poema lírico, mas também só procura o seu efeito no poder da monotonia, tanto pelo som como pelo pensamento. O prazer tem como única origem a sensação de identidade, de repetição. Resolvi variar, e, portanto, aumentar o efeito, conservando em geral a monotonia do seu todo, repetindo, de cada vez, a do pensamento: isto é, decidi produzir efeitos constantemente renovados fazendo variar as aplicações do refrão, permanecendo o refrão, no seu conjunto, tal e qual.
(...) Estando assim determinado o som do refrão, era necessário escolher uma palavra que contivesse tal som e ao mesmo tempo se ligasse tanto quanto possível com essa melancolia que decidira havia de dar a sua tonalidade ao poema. Em tal ordem de pesquisas teria sido absolutamente impossível omitir a palavra nevermore, «nunca mais». E, na verdade, foi a primeira que me ocorreu.
O desideratum seguinte consistiu em: sob que pretexto ligar continuamente esta única palavra nevermore? Ao notar a dificuldade que desde começo experimentava em inventar uma razão suficientemente plausível para tal perpétua repetição, não deixei de me aperceber de que essa dificuldade provinha unicamente da ideia preconcebida de que tal palavra devia ser pronunciada de modo contínuo e monótono por um ser humano; em breve não deixei de me aperceber de que a dificuldade consistia em conciliar essa monotonia com o exercício da razão na criatura que repetisse a palavra. Então, de súbito, tive a ideia de uma criatura incapaz de raciocinar, embora capaz de falar; e, muito naturalmente, ocorreu-me em primeiro lugar a ideia de um papagaio, logo substituída pela de um corvo, ave igualmente dotada de palavra e infinitamente mais de acordo com o tom procurado.
Tinha, pois, chegado à concepção de um corvo, ave de mau agoiro, que repete invariavelmente apenas a palavra nevermore como conclusão de cada estância, num poema de um tom melancólico e com a extensão de cem versos. Então, sem nunca perder de vista este fim, superlativo ou de perfeição em todos os pontos, perguntei-me: «De todos os temas melancólicos, qual, no consenso universal dos homens, é o mais melancólico?» Resposta evidente: «A Morte.» «E quando é que esse tema mais melancólico é o mais poético?» Ainda aqui a resposta decorre com evidência do que já expliquei longamente: «Quando se alia o mais estreitamente com a Beleza: a morte de uma linda mulher é, pois, indiscutivelmente o tema mais poético do mundo…»
A verdade é que a originalidade, excepto nos espíritos de raríssima capacidade, de modo nenhum é, como alguns supõem, assunto de instinto ou de intuição. Em geral, para encontrá-la, é preciso procurá-la laboriosamente, e, embora constitua um mérito positivo da ordem mais elevada, conquistá-la exige menos invenção do que negação.

Edgar Poe, in ' A Filosofia da Composição '


O CORVO *


Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de algúem que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.

É só isto, e nada mais."
Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,

Mas sem nome aqui jamais!
Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.

É só isto, e nada mais".
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.

Noite, noite e nada mais.
A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isso só e nada mais.
Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.

"É o vento, e nada mais."
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,

Foi, pousou, e nada mais.
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."

Disse o corvo, "Nunca mais".
Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,

Com o nome "Nunca mais".
Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, "Amigo, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais".

Disse o corvo, "Nunca mais".
A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais

Era este "Nunca mais".
Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureia dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,

Com aquele "Nunca mais".
Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,

Reclinar-se-á nunca mais!
Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"

Disse o corvo, "Nunca mais".
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ância e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!

Disse o corvo, "Nunca mais".
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"

Disse o corvo, "Nunca mais".
"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte!
Torna á noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"

Disse o corvo, "Nunca mais".
E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,

Libertar-se-á... nunca mais!

Edgar Allan Poe

Um comentário:

  1. Tens um extremo bom gosto Lord!
    Parabéns por seu trabalho aqui no site
    estou conhecendo e estarei seguindo
    a partir de hoje.

    Allan Poe é genial

    Dellone

    @SilenceShadows

    --> silenceshadows.blogspot.com

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